Vanessa Gil e Cláudia Prates*
27
de abril é o Dia Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Para homenagear
a bravura dessas mulheres, escrevemos essas breves reflexões. Nossa
intenção é repensar a precarização do trabalho doméstico remunerado, as
dificuldades de regulamentação, e o histórico de discriminação que
envolve a profissão.
Iniciamos resgatando a
luta das trabalhadoras domésticas no Brasil, seus avanços e as
dificuldades para ampliar os direitos da categoria. Poderemos verificar
que a luta se dá aos poucos, com pequenos avanços, sempre abaixo do que é
conquistado pelas/os demais trabalhadoras/es.
Em
seguida discutimos a presença e as especificidades da força de trabalho
feminina dentro do sistema capitalista. Buscamos estabelecer a
feminilização da pobreza e do trabalho doméstico com os conceitos de
trabalho produtivo e improdutivo.
Por fim,
tratamos das possibilidades de superação e o papel do Estado na
elaboração de políticas públicas que alterem a desigualdade de gênero na
composição do trabalho doméstico remunerado e não-remunerado.
Devido
à importância e peculiaridade do trabalho dessas mulheres, convidamos o
leitor a refletir conosco sobre essa categoria, sua história e sua
luta.
Cenário do Trabalho Doméstico Remunerado1 no Brasil
O
Trabalho Doméstico no Brasil é caraterizado por três recortes
principais: gênero, raça e classe. Segundo dados da OIT, o trabalho
doméstico remunerado é realizado por mulheres (95%), negras (61%) e
pobres (100%). Isso não é por acaso. Como absolutamente todas as
relações sociais, as características do trabalho doméstico remunerado
se constituem através de um longo processo histórico e, no caso do
Brasil, tem origem na escravidão.
É do trabalho
na casa-grande, servindo aos senhores de engenho, sob o comando das
senhoras brancas da casa grande, que o trabalho doméstico brasileiro
constrói sua base histórica. Com o “fim da escravidão”, um dos poucos
trabalhos acessíveis às mulheres negras era o doméstico, na maioria das
vezes, em troca de comida e abrigo. Assim, com a abolição a escrava
passou a ser trabalhadora doméstica.
A
categoria foi regulamenta somente com a Lei 5.859/72, onde define
trabalhador/a doméstico/a, em seu artigo 1°, como: “Aquele que presta
serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à
família no âmbito residencial”. Como a própria lei afirma, sendo o
trabalho doméstico remunerado uma atividade sem fins lucrativos, o
principal argumento para a flexibilização das leis que o regem estão
assentadas na ideia de que esse tipo de trabalho é de “natureza”
específica e que não produz lucro ao empregador, que por sinal é sempre
uma pessoa física. Ou seja, como veremos mais adiante, o trabalho
doméstico é desvalorizado porque não cria valor de troca, não resulta em
mercadoria, não oferece lucros que possam ser facilmente contabilizados
pelo empregador.
Graças
à luta contínua das/os trabalhadoras/es domésticas/os remuneradas, a
Constituição Federal de 1988 em seu art. 7°, parágrafo único,
estabeleceu como direitos o salário mínimo; irredutibilidade salarial;
repouso semanal remunerado; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo
menos, 1/3 a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem
prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias;
licença-paternidade; aviso prévio; aposentadoria e integração à
Previdência Social.
Em 23 de março de 2001,
foi promulgada a lei 10.208, no qual estabelecia a faculdade do
empregador em efetuar o recolhimento do FGTS e também o direito de
receber seguro desemprego, para a/o empregada/o domestica/o. Em 2006 a
Lei n.º 11.324 alterou artigos da Lei n.º 5.859/72, com qual os/as
trabalhadores/as domésticos/as de fato passaram a ter o direito a férias
de 30 dias, direito aos feriados civis e religiosos, gestantes passaram
a ter estabilidade, além da proibição de descontos de moradia,
alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados no local de
trabalho. Entretanto, mesmo com avanços, não ficam estabelecidos
direitos importantes das demais categorias, como o seguro-desemprego,
pois somente aquela/e empregada/o doméstica/o que estiver trabalhando
por, no mínimo, 24 meses e com contribuição de, no mínimo, 15 meses de
FGTS (sendo que o pagamento deste é facultativo), terá direito ao
benefício. Portanto, caso o empregador venha a não optar pelo
recolhimento do FGTS, esta/e empregada/o doméstica/o não receberá o
beneficio do seguro desemprego.
As dificuldades
em garantir os mesmos direitos concedidos às demais categorias
evidencia o caráter exploratório e desigual que caracteriza a
contratação dessas/es trabalhadoras/es. Segundo informações da OIT, nos
países em desenvolvimento, o trabalho doméstico representa de 4 a 10%
da força de trabalho. Mesmo assim, na América Latina, somente 23% das
trabalhadoras domésticas possuem benefícios de seguridade social.
A
organização dessas/es trabalhadoras/es, bem como a fiscalização das
normas trabalhistas, é extremamente dificultada pelo fato do trabalho
ser realizado no âmbito doméstico, no espaço privado das famílias ou
indivíduos que as/os contratam. Mesmo assim, a luta das/os
trabalhadoras/es Domésticas/os está organizada sindicalmente através da
Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) e da Central
Única dos/as Trabalhadores/as (CUT), que encabeçam a luta para que o
Brasil ratifique da Convenção sobre as Trabalhadoras e os Trabalhadores
Domésticos2 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Dessa forma, as trabalhadoras/es domésticos passariam a ter os mesmos
direitos das demais categorias, previstos no Art.7° da Constituição
Brasileira e não mais apenas nove dos 34 artigos.
Basicamente,
as trabalhadoras domésticas remuneradas podem encontrar três tipos de
contratos de trabalho: formal como mensalista e dormindo no emprego,
como mensalista e não dormindo no emprego e como diarista. A primeira
recebe menos que a segunda e a segunda menos que a terceira. Entretanto,
caso a diarista não consiga preencher totalmente sua carga horária, o
que é bastante comum, receberá menos que as outras duas.
Dados do IBGE de 2010 demostram que, no Brasil, 17% das mulheres ocupadas são trabalhadoras domésticas remuneradas3.
Isso representa mais de sete milhões de mulheres, em sua maioria,
negras. Equivale a uma população maior do que a cidade do Rio de
Janeiro.
A Força de Trabalho Feminino
A
desvalorização do trabalho doméstico, seja ele remunerado, ou não, tem
raízes na divisão sexual do trabalho, no machismo e na escravidão. A
divisão sexual do trabalho é a divisão de tarefas, trabalhos, entre
atividades masculinas e femininas, constituídos de importância
hierárquica, sendo os trabalhos destinados aos homens mais importantes
do que os destinados às mulheres. É um fenômeno que se restrutura de
acordo com a sociedade e tempo histórico no qual está inserido. Dessa
forma, ao longo da história, na maioria das comunidades, foram as
mulheres as responsáveis pelo trabalho doméstico e, por conta disso,
tais atividades foram desvalorizadas socialmente.
Para
compreender a desvalorização do trabalho doméstico, precisamos entender
os conceitos de trabalho produtivo e trabalho reprodutivo4. O
primeiro é o tipo de trabalho que, como já diz o nome, produz valores
de uso, ou seja, mercadorias que podem ser vendidas e compradas. O
segundo, comumente realizado pelas mulheres, são os trabalhos que
permitem e garantem que os/as trabalhadores/as tenham condições de
reproduzir sua força de trabalho: limpar a casa, cozinhar, lavar a
roupa, cuidar das crianças. A força de trabalho é a única mercadoria que
possui o/a trabalhador/a: a sua capacidade de trabalhar e produzir
mercadorias. Assim, mesmo sendo fundamental para a sociedade, o trabalho
doméstico, seja ele remunerado ou não, é interpretado como tarefa
natural das mulheres, e por ser visto como inerente à condição de fêmea,
é invisibilizado pela sociedade.
No sistema
capitalista, o trabalho feminino assumirá um novo caráter. Com a chegada
da Revolução Industrial, as mulheres passaram a fazer parte da força de
trabalho dentro das fábricas, juntamente com as crianças. Entretanto, o
trabalho do lar continuou o mesmo, caraterizando o que então se
chamaria dupla jornada de trabalho.
Da
Primeira Revolução Industrial até os dias atuais a vida das mulheres
sofreu largas mudanças, em especial nos grandes centros urbanos. A
entrada das mulheres no mercado de trabalho se deu de forma massiva, sem
diminuir com isso suas responsabilidades no âmbito doméstico. Será a
empregada doméstica que assumirá o lugar na realização do trabalho
reprodutivo.
Contudo, a questão de classe não
está separada da questão de gênero, uma vez que as mulheres tratarão do
tema conforme sua classe permitir. As mulheres da burguesia contratarão
as mulheres pobres para assumirem em seu lugar as massantes tarefas do
lar. Às mulheres pobres, que possuem baixa escolaridade, não resta outra
alternativa a não ser vender sua força de trabalho, mesmo que sem o
mínimo de direitos. De qualquer forma, a responsabilidade segue sendo
feminina.
Notas Sobre o Trabalho Doméstico Decente
A
precarização demostra que dois caminhos devem ser seguidos
simultaneamente para a melhora das condições de trabalho e de vida
dessas trabalhadoras: regulamentação e políticas públicas. O primeiro
permite a garantia de direitos que valorizam a profissão e melhoram as
condições de trabalho. O segundo permite tanto a melhoria da vida das
trabalhadoras e abertura de novas possibilidades de trabalho, como
prepara a sociedade como um todo para lidar com o compartilhamento do
trabalho doméstico.
A busca do Trabalho
Doméstico Decente, contudo, vai além da questão da legislação.
Precisamos construir uma sociedade onde o trabalho doméstico seja
compartilhado pelos membros da família. Conforme pesquisa recente5, as mulheres gastam em media 23 horas a mais na semana do que os homens com as tarefas domésticas.
Para
além, é responsabilidade do Estado desenvolver políticas públicas que,
de fato, auxiliem nos cuidados com a família, com creches para as
crianças pequenas, escolas de turno integral, programas de atenção
as/aos idosas/os. Tais políticas devem ser de caráter universal,
englobando a toda a população e numa clara perpectiva de gênero.
É
importante, quando falamos de políticas públicas, diferenciar programas
voltados para a as mulheres e os voltados para a questão de gênero,
pois, no primeiro, mesmo a mulher sendo o foco do programa, ele não
necessariamente altera as relações de gênero. Assim, na questão do
trabalho doméstico, as políticas devem modificar a feminilização da
pobreza, incentivando o compartilhamento das responsabilidades
domésticas. Para além, essas políticas deverão buscar o rompimento com
padrões androcêntricos que desvalorizam qualquer traço cultural que
esteja ligado a feminilidade.
Nesse sentido, o
governo brasileiro iniciou em 2003 um forte diálogo com as organizações
que representam as/os empregadas/os domésticas/os no país e entre os
anos de 2006 e 2007 efetivou-se o Programa Trabalho Doméstico Cidadão6,
que atualmente está na sua segunda etapa. O objetivo é qualificação
pessoal e profissional das trabalhadoras, alinhadas com a elevação da
escolaridade e políticas públicas de valorização do trabalho
doméstico.
Dessa forma, a tendência que se
apresenta é de que cada vez menos mulheres optem por trabalhar na área
de serviços domésticos conforme cresce a escolaridade, optando por
trabalhos mais valorizados. Assim, a oferta dessas trabalhadoras tende a
diminuir, a exemplo do que acontece nos países desenvolvidos. Daí a
necessidade do compartilhamento das tarefas, para que as mulheres da
família não retomem o peso para si, mas possam dividir com todos os
membros da família. Esse processo eé fundamental para o desenvolvimento
de uma sociedade que busca a igualdade entre homens e mulheres.
Queremos,
neste momento, saudar esse dia com o compromisso de continuar lutando
pela ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas e para que o
Brasil ratifique a Convenção sobres as Trabalhadoras e os Trabalhadores
Domésticos da OIT. Só assim deixaremos a exploração da classe
trabalhadora nos tristes escritos do pasado.
Referências
1)
Dessa forma, são entendidos como trabalhadores domésticos o/a
cozinheiro/a, faxineiro/a, motorista, jardineiro/a, etc. Cabe ressaltar
que porteiros/as, zeladores/as e serventes de prédios de apartamentos
residenciais são trabalhares/as regidos pela CLT.
2) Ver Mais
Trabalho Decente para Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos no
Brasil – OIT escritório no Brasil em .
3) Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), referentes a 2010, realizada pelo IBGE.
4) O conceito é problematizado pelas feministas contemporâneas. Indicamos Helena Hirata em: scielo.br/pdf/cp/v37n132/a0537132
5) Material pode ser acessado em: www.oitbrasil.org.br
6) Maiores informações no site: www.oitbrasil.org.br
* Vanessa Gil e Cláudia Prates são militantes da Marcha Mundial de Mulheres-RS