Essa é uma tradução livre que eu fiz de um artigo publicado no jornal El Pais, da Espanha, em 2007, quando o tema da prostituição estava em debate no legislativo daquele país.
A realidade da prostituição na Espanha, e em muitos países da Europa, é distinta da realidade brasileira. Enquanto lá a maior expressão da prostituição é a que envolve imigrantes ilegais, no Brasil a realidade é marcada pela profunda desigualdade social e de gênero, que tem como expressões desta forma de exploração das mulheres a prostituição, o turismo sexual, o tráfico interno de mulheres e meninas, a prostituição nas estradas e portos, nos grandes centros urbanos, a indústria do lazer e entretenimento, além de sermos um país de origem do tráfico internacional de mulheres.
De todas as formas, o artigo a seguir apresenta elementos importantes para refletir sobre o assunto, lá e cá.
O artigo é de Amelia Valcárcel, catedrática de Filosofia Moral e Política da UNED, e membro do Conselho de Estado. Também assinam conjuntamente este artigo Victoria Sau, Celia Amorós, Teresa Gisbert, Rosa Cobo, Inmaculada Montalbán y Alicia Miyares.
A prostituição é um modo de vida desejável?
Ninguém gosta de falar da prostituição, nem tampouco que se faça visível em nossas vidas. Porém, muitas pessoas que não a colocam no horizonte do que é desejável para elas mesmas, não tem problemas em defender que a prostituição possa ser um modo de vida para “algumas” mulheres.
Mas, a prostituição é uma opção vital semelhante a qualquer outro trabalho? Certamente é um modo de vida para os “empresários do sexo” que buscam a normalização legal e social de seu dinheiro. Não deveríamos esquecer que a prostituição é o terceiro negócio em benefícios e que uma parte substancial deste negócio se assenta na “economia criminosa”. Está comprovado que ao redor do mundo da prostituição se produz um aumento do tráfico de drogas, da delinqüência e outros delitos.
A prostituição também é o modo de vida das máfias que traficam mulheres. É um fato que prostituição e tráfico de mulheres estão intimamente relacionados. Os dados são persistentes e dão conta de qual é o mapa de origem e social destas mulheres: na Espanha, mais de 90% das mulheres em situação de prostituição são imigrantes em situação irregular; mais de meio milhão de mulheres e meninas são vítimas deste fenômeno.
Este único dado – o volume do tráfico de seres humanos – serve para desbaratar qualquer pretensão de “honrabilidade” para traficantes e “empresários do sexo”. Hoje sabemos que sem tráfico de mulheres a prostituição na Espanha não seria um negócio. Poucas são, atualmente, as mulheres espanholas envolvidas na prostituição por vulnerabilidade ou exclusão social. A realidade é que, quando em uma sociedade aumentam os espaços de igualdade e o nível de vida, diminui drasticamente o número de mulheres do próprio país que se dedica à prostituição.
Vulnerabilidade, marginalização e pobreza são as causas que levam à prostituição, não suas conseqüências. A prostituição caminha com a feminização da pobreza. As mulheres do terceiro mundo vêm a nossos países devido à pobreza dos seus. Vêm ao primeiro mundo, alentadas ou enganadas pelas máfias de traficantes, para melhorar sua vida e, no entanto, acabam dentro da prostituição como horizonte vital. A maioria não sai deste mundo também pela pobreza, porque tem que manter e cuidar de sua família, porque tem que pagar dívidas àqueles que as estão explorando.
Busquemos onde busquemos, é a pobreza e o fato de estarem indefesas que vemos nos rostos de todas estas mulheres exploradas e traficadas. Regularizar a prostituição as ajudaria?
Holanda e Alemanha, que optaram por isso, estão comprovando que o tráfico e a prostituição clandestina têm se intensificado. Portanto, se o que se quer é ajudar a essas mulheres e não tornar as máfias respeitáveis, que não parece um objetivo sério de política alguma, o que deve ser feito é realizar programas de inclusão social, abordar políticas de igualdade que freiem ou evitem a vulnerabilidade, a pobreza e a marginalização. Este é o mundo real.
Mas, além disso, do fato de que a prostituição exista não decorre que deva continuar existindo. Vamos ao melhor dos mundos possíveis: pode-se argumentar que em um mundo ideal, sem exploração e sem tráfico, algumas mulheres poderiam livremente querer se prostituir. Por hora, esse mundo não existe, nem dá sinais no horizonte. Mas, ainda que chegássemos a esse improvável marco, se deveria recordar que nem sempre o consentimento legitima uma prática, nem muito menos a converte em um trabalho. As máfias, mas também algumas pessoas bem-intencionadas, insistem muito na vinculação de consentimento e trabalho. Não é demais relembrar que isso é uma falácia. Nunca que um modo de vida seja escolhido supõe que esse modo de vida seja automaticamente desejável. Pode, por exemplo, um indivíduo livre desejar ser escravo? Não podemos descartar isso. Isso converte a escravidão em uma prática recomendável? Com certeza não. A escravidão foi abolida e quando isso aconteceu muitos escravos choraram.
Nem sempre consentir, ou inclusive querer, legitima o que se faz, nem a quem se faz. O consentimento não converte uma grande variedade de atividades em trabalhos. A prostituição não é nenhum bom modelo de relação de trabalho, nem de relação entre homens e mulheres. Se considerássemos, por um instante, com seriedade, que modelo de relação trabalhista seria? Um que colidiria frontalmente com nossa normativa em matéria de direitos trabalhistas. Esse trabalho deveria ser aceito quando não aparecesse outro preferível em primeiro lugar? Haveria cursos de capacitação e reciclagem? Estas perguntas podem provocar até um sorriso, mas são severas e pertinentes. Os trabalhos são assim.
Há um estigma e ninguém pode negar, mas qualquer regulação transmitiria à sociedade uma mensagem equivocada, porque conteria uma dimensão pedagógica. A lei educa a cidadania. Desejamos educar nossas filhas e filhos apontando a prostituição com uma atividade aceitável? Desejamos transmitir a eles que comprar ou se vender é um modelo pertinente de relação entre os sexos? Podemos desejar isso e ao mesmo tempo manter uma noção mínima de cidadania e igualdade? Este breve texto nos leva a compartilhar as conclusões do informe proposto pela Comissão Mista Congresso-Senado dos Direitos da Mulher. Parece bastante acertado e prudente que esta Comissão, que escutou todos os argumentos e ouviu todas as posições, tenha definido por rechaçar que a prostituição seja um modo de vida desejável e aceitável.
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