"Em muitos países do mundo a garota
Também não tem o direito de ser.
Alguns até costumam fazer
Aquela cruel clitorectomia.
Mas no Brasil ocidental civilizado
Não extraímos uma unha sequer
Porém na psique da mulher
Destruímos a mulher."
Tom Zé
Nunca foi um problema para mim dizer que gosto de novela. Sim, gosto. É um momento onde esvazio a minha cabeça e não penso em nada, coisa difícil em um mundo com tanto trabalho e luta pela frente, como o mundo de hoje em dia. Não é por isso que deixo de concordar com o papel alienante que as telenovelas cumprem na sociedade brasileira, e como elas reproduzem, de forma estereotipada e exagerada, as opressões e as explorações que afetam as mulheres brasileiras diariamente. Por isso não deveria me assustar com o André (Lázaro Ramos), de Insensato Coração, a nova novela das oito da Globo. Mas insisto em me indignar.
O André é o cara que, segundo o autor da novela, todas as mulheres gostariam de passar uma noite. De um jeito sedutor, ele conquista todas as mulheres que deseja, e todo capítulo ele leva uma para seu apartamento. Essas cenas todas terminam com as mulheres loucas para vê-lo mais uma vez, ou com elas torcendo para ele pedir seus telefones. Mas ele não pede, e "honestamente", "joga limpo" com elas, dizendo que não repete transas. Após isso, aparecem cenas dele contando vantagem com os amigos, sobre como as mulheres se derreteram com ele ou como a mulher X ou Y agora persegue ele, ou não tira ele da cabeça. Ele não quer se relacionar com as mulheres, mas apenas marcar mais um número em seu caderno de anotações.
É triste ver o Lázaro Ramos, ator que sempre admirei por suas interpretações e posições políticas, fazendo um papel tão deplorável. Não só na forma como se refere ou como se relaciona com as mulheres, como se nós fôssemos apenas prestadoras de serviços pontuais a eles e seus amigos homens, mas da forma como enxerga e trata nós mulheres, como verdadeiras prostitutas. Nesta lógica, não interessa o nome da mulher, quem ela é, ou o que ela faz, mas sim que ela ofereça um bom serviço em seu apartamento com vista para o mar na Zona Sul do Rio de Janeiro, e fim. Fim não, porque vejam só como ele é bonzinho, ele paga o táxi da volta para casa das mulheres. Quer relação mais mercantilizada que esta?
A sociedade capitalista consegue naturalizar o abominável. A crítica deste texto não é moralista, mas sobre confusão feita entre ser liberal e ser libertária. Para nós, mulheres femistas, não pode servir um modelo liberal de relacionamento, que nos trate como objeto, pois isso sempre foi assim, historicamente. Nem nos serve mais a velha história dos contos de fadas. O que nos vale, é que nossas relações sociais e sexuais sejam baseadas em valores de solidariedade, e não de reprodução da economia capitalista, em que até as relações sexuais se tornaram mercadoria. Certíssima está a gloriosa feminista Alexandra Kolontai, quando fala da necessidade de praticarmos o amor-camaradagem, baseado no afeto, na liberdade e no companheirismo. Só este porá um fim a servidão das mulheres pelo homens.
Exemplos como estes, e outros muito piores, estão no dia-a-dia das programações televisivas de nosso país, seja em novelas, em reportagens ou em programas de auditório, onde estamos sempre marginalizadas e mercantilizadas. Nossa tarefa não é fácil, mas temos que seguir em frente. Rompendo não apenas com o machismo, pois este é impossível de se romper sozinho, mas também com o monopólio dos meios de comunicação e com a ausência de participação popular na formulação da programação televisiva do nosso país. Reafirmar que, para mudar a vida das mulheres, uma outra comunicação inclusiva e libertária se faz urgente, pois só mudando o mundo que mudamos as nossas vidas.
*Talita São Thiago Tanscheit é estudante de Ciências Sociais da PUC-RIO e militante do Coletivo de Mulheres da PUC-Rio, da Marcha Mundial das Mulheres e da Kizomba Lilás.
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