Fonte: Coletivo DAR: http://coletivodar.org/2011/05/os-efeitos-da-proibicao-das-drogas-sobre-as-mulheres-em-debate/
Veja também vídeo sobre drogas e mulheres, com Helena Ortiz em http://www.youtube.com/watch?v=SuPdI4zLj84&feature=related
A ideia do debate “Os efeitos da proibição das drogas sobre as mulheres”, realizado dia 10 de maio na PUC-SP, surgiu da constatação da carência de análises acerca do proibicionismo das drogas com um recorte de gênero, além da observação da própria masculinização dos espaços do movimento antiproibicionista, que contam ainda com um número reduzido de mulheres. Assim, o Coletivo DAR e a Marcha da Maconha SP organizaram a atividade em conjunto com o CA Benevides Paixão e os coletivos feministas Yabá e 3 Rosas, convidando para a conversa a Ana Araújo da Marcha Mundial de Mulheres; Natália Corazza, doutoranda em antropologia pela UNICAMP (pesquisa relações afetivas entre presas); Alessandra Teixeira, advogada do IBCCRIM, doutoranda em sociologia e integrante do Grupo de Trabalho Mulheres Encarceradas; e Pedrão Nogueira, do DAR e da Marcha da Maconha SP.
As históricas bandeiras de luta das mulheres, assim como a militância dos que buscam alternativas à atual política de guerras às drogas têm já de cara a convergência de serem lutas políticas contra um status quo sustentado por interesses econômicos e valores morais milenares que ainda balizam nossa estrutura social. Além disso, foram levantados ainda uma série de pontos de confluência entre as duas frentes de luta.
Autonomia sobre o próprio corpo
Os dois movimentos encontram obstáculos nos mecanismos legais de incidência do Estado nas decisões da esfera privada das pessoas. No caso específico das mulheres, uma de suas principais pautas é a defesa da legalização do aborto, cuja proibição acarreta em milhares de mortes maternas em todo o mundo. De acordo com o relatório Morte e negação: abortamento inseguro e pobreza, divulgado em 2007 pela Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), a cada ano são realizados 46 milhões de abortos no mundo, dos quais 19 milhões são feitos de forma insegura e 70 mil resultam em morte materna. Dos procedimentos inseguros, 96% são feitos em países “em desenvolvimento”. Na América Latina foram registrados 17% dos abortos clandestinos, ficando atrás somente da África, com 58%. No Brasil, o aborto feito de forma insegura é a quarta causa de morte materna, sendo a primeira em Salvador. Da mesma forma que o Estado legisla sobre o direito da mulher decidir ou não pela interrupção de uma gravidez, ele impõe aos cidadãos quais substâncias psicoativas podem ou não ser consumidas pelo corpo de cada indivíduo.
“A jurisdição sobre a vida das pessoas, além de causar inúmeros danos diretos, é justificativa para a criminalização das pessoas, colocando-as à beira dessa ordem social estabelecida”, expõe Ana Araújo. Não por acaso, o setor da sociedade que sofre na pele a criminalização do aborto e das drogas é o mesmo: nem os usuários de drogas que tem dinheiro para comprar as substâncias ilícitas que consomem nem as mulheres ricas que podem fazer o aborto em clínicas clandestinas de qualidade sofrem de repressão pelo aparto policial.
Além disso, tanto a proibição do aborto quanto do consumo de certas drogas têm raízes eminteresses políticos e econômicos que buscam respaldos em dogmas morais e religiosos, representando um ataque à teórica laicidade do Estado. Ana lembrou, ainda, que um dos argumentos usados contra a legalização nos dois casos é que assim aumentaria o número de usuários de drogas ou de prática de abortos. “As políticas atuais contra as duas práticas tem se mostrado absolutamente ineficientes”, observa, ressaltando que o argumento é bastante frágil “em primeiro lugar porque é uma especulação e em segundo lugar porque no caso do aborto isso é tratado como se esse fosse se transformar num método contraceptivo, isso é uma falha grosseira”.
Hierarquização das lutas
“A pauta feminista e a pauta pela legalização das drogas são sempre tidas por uma visão equivocada da esquerda no Brasil como pautas secundarizadas”. A constatação foi consenso entre os militantes de cada uma dessas duas frentes que estavam compondo a mesa do debate. “A principal pauta é sempre a luta de classes. Só que aí tem um equívoco claro, essas lutas estão ligadas à luta de classes porque é impossível criar novos homens, novas mulheres e consequentemente uma nova sociedade se você não trava essas lutas no cotidiano”, afirma Ana.
Pedrão chamou atenção ainda para o fato de que o debate antiproibicionista, por ser de certa forma mais novo dentro da esquerda, é ainda mais negligenciado. “Ainda que muitas vezes as questões ligadas às mulheres, aos negros, aos homossexuais não saiam dos papéis das resoluções da esquerda, de certa forma já ganharam alguma aceitação”, reflete Pedrão, acrescentando a dificuldade que os militantes antiproibicionistas têm de quebrar estereótipos que superficializam as discussões políticas intrínsecas ao debate das drogas: “Tem muita gente que fala ‘ah, o que esses maconheiros estão falando agora?’, e ainda setores que chegam a defender a proibição das drogas”.
Assim, foi ressaltada a necessidade das lutas congregarem tanto mudanças macro-econômicas como transformações das concepções e relações sociais cujas raízes são até anteriores ao capitalismo. “Quando uma luta avança, nenhuma outra retrocede”, lembraram.
Criminalização e encarceramento das mulheres
A militarização nas favelas sob a justificativa de guerra às drogas também atinge as mulheres de um modo específico além de representar uma violência geral a toda a população. Além de abusos sexuais e agressões psicológicas, dados do sistema prisional de 2009 indicam que cerca de 50% das mulheres mantidas no sistema carcerário são por comércio e/ou porte de entorpecentes, frente a 20% de homens detidos pelo mesmo motivo. “Efetivamente em números proporcionais a mulher sofre muito mais na pele os efeitos da criminalização das drogas. Mas ela comete mais o tráfico?”, questiona Alessandra Teixeira ao iniciar sua exposição.
A advogada relembra Foucault ao discorrer sobre essa economia criminal, que o filósofo classificava como um tipo de gestão diferenciada de legalismo por parte do Estado. “O que faz o Estado quando criminaliza? Pune uma camada seleta de pessoas e tira um lucro ilícito em cima disso”. Ao fazer um paralelo com o mercado da prostituição – considerada por Alessandra como a primeira grande economia criminal urbana brasileira –, ela ressalta que uma economia ocupa o espaço da outra por volta dos anos 1970.
“As mulheres estavam no centro dessas duas economias. No caso da prostituição eu não preciso nem dizer, como a ponta mais fraca e explorada de um mercado que mobilizava muitos recursos, agentes públicos, lucros, enfim, e que tinha participação do Estado diretamente, e no mercado da droga a mulher vem desde os anos 1990 desempenhando também um papel fundamental” analisa Teixeira.
Foi lembrado que na cadeia do tráfico das drogas, as mulheres raramente ocupam um papel administrativo, mas ficam nos pólos mais vulneráveis, muitas vezes se encarregando de tarefas mecânicas como embrulhar, armazenar, etc., em ambientes mais privados ou sendo o que se chama de “mula”, quando se transporta drogas para dentro de presídios ou outros lugares. Não raramente são nesses momentos do processo em que se faz a detenção. “Muitas vezes a precariedade e vulnerabilidade das mulheres nessas condições ainda é maior quando se leva em conta que muitas delas são chefes de família. Essas mulheres encarceradas são em sua maioria chefes de família, mães solteiras”, relata Alessandra, ao apresentar o impressionante dado de que 90% das mulheres encarceradas são mães e quase 80% delas são mães sem os pais dos filhos presentes.
“A criminalização com a proibição das drogas gera o quê? Uma economia criminal, um mercado. E esse mercado transaciona um produto que é comercializado – pode ser a droga, a prostituição, etc – mas também transaciona mercadorias políticas ilícitas: extorsão, a caixinha, a corrupção, todas as formas em que o Estado comparece nesse mercado para tirar a sua vantagem”, observa Alessandra, que completa: “Nessa trama, a mulher está sempre a desempenhar um papel de desvantagem, porque se ela desempenha um papel de desvantagem na sociedade, ela vai desempenhar de uma maneira mais intensa ainda na prisão”.
Precariedade do sistema prisional feminino
Natália Corazza, que desenha em sua tese uma análise etnográfica de mulheres presas, chamou a atenção para as múltiplas possibilidades de aprisionamento pelo tráfico e a partir daí os muitos efeitos que podem incidir sobre diferentes perfis de mulheres. Para ilustrar isso, expôs quatro histórias de mulheres fictícias, mas baseadas nos relatos e convivências que a antropóloga vive nas dois presídios nos quais trabalha: a Penitenciária Feminina da Capital, prisão majoritariamente de presas estrangeiras, e a Penitenciária Feminina de Santana (antiga Penitenciária do Estado, presídio masculino), que mantém praticamente só presas brasileiras.
Maria da Paz é uma dessas personagens. Está presa hoje na Penitenciária Feminina de Santana,fumava crack desde os 6 anos, cresceu na “cracolândia” e para se sustentar fazia alguns programas. Quando consolidou uma relação fixa com um homem também habitante da região,deixou de fazer programa e começou a vender dessas pequenas pedras demonizadas. Foi presa. “Numa conversa com uma das pessoas que pode estar bastante inserida nessa cenário, uma delas me disse ‘eu preferia fazer programa, pelo menos eu não era presa’, conta Corazza.
Já Fátima é inglesa, branca, casada, heterossexual e está presa na Penitenciária Feminina da Capital. Ela e o marido circulavam por vários lugares do mundo levando drogas, foram presos diversas vezes, essa era a forma de vida deles. Tatiana era empregada doméstica, morava em uma região periférica de São Paulo, tinha o marido preso e resolveu entrar com drogas na prisão masculina onde o marido dela estava. Para fazer isso teve contato com quem comandava esse tráfico dentro da prisão, que não era o marido dela, mas eram os irmãos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Foi presa.
O quarto cenário é de Gabriela, que desde os 6 anos visita familiares na prisão. Ela, como grande parte da família, passou a administrar o negócio a medida que outros foram presos até que em algum momento ela foi detida. “Acho interessante que ela é esposa de um homem do PCC, ela então, ocupa uma situação de só estar administrando o negócio porque os homens não estão. E quando ela vai pra prisão ela atende a diversas regulamentações que vem da prisão masculina”, observa Natália. “O PCC, bastante financiado pelo tráfico de drogas, muda a chave do convívio das prisões femininas num âmbito de que quem passa a ordenar o que é certo ou errado nas prisões femininas é um coletivo de presos masculinos”.
“O presídio feminino é todo pautado a partir de regras, de lógicas do encarceramento masculino. Isso não é só o fato de que as prisões são concebidas para homens e as mulheres que vivem lá, pois isso é recorrente, mas é mais que isso: o código disciplinador da prisão, não o formal mas o informal, é um código masculino”, acrescenta Alessandra Teixeira.
Foram ressaltadas ainda, as precárias condições a que as mulheres são submetidas dentro dos presídios. A falta de absorventes na maior parte das penitenciárias, os numerosos abusos sexuais e psicológicos, a falta de atendimento médico entre os quais o ginecológico, o descaso dado aos cuidados necessários para as grávidas, entre outros. No que diz respeito às visitas íntimas, em alguns presídios – principalmente os em que o PCC se faz mais fraco e o Estado mais presente – existe um controle moralista dos visitantes de modo que as mulheres têm de provar que tem com aquele homem um laço conjugal. Permissão para visitas íntimas homoafetivas não existe.
Outra questão levantada como um fenômeno relativamente novo é o aumento da medicalizaçãodas mulheres envolvidas com drogas e o consequente povoamento feminino nos manicômios judiciários. “Elas estão presas por tráfico, mas muitas vezes numa condição de usuárias também. Hoje acho que o proibicionismo da droga está desempenhando esse papel também, essa lógica da medicalização”, reflete Alessandra. O paralelo com o fato das mulheres historicamente serem a clientela preferencial dos manicômios, por serem agentes do que era categorizado como desordem social ou histeria (na verdade uma simples negação do papel social imposto às mulheres), não é mera coincidência.
Machismo nos movimentos sociais
Ainda que não seja novidade a presença do machismo em todos os setores da sociedade, incluindo os espaços da esquerda que se posicionam contra qualquer tipo de opressão, a exposição de Pedrão Nogueira chamou a atenção para a carência de militância feminina (e feminista) nos espaços antiproibicionistas. Levantou algumas hipóteses para explicar o porquê.
“A cultura das drogas hoje em dia eleva o machismo em potências que não se observa em outros campos culturais, em grande parte pela própria ilegalidade. Pensei em um exemplo que está bastante enraizado na cultura de uso da cannabis, mas também de outras drogas: quase sempre é homem que chega e apresenta a droga”, reflete. “Por carregar o estatuto de ilegalidade, normalmente é o homem que vai na boca, o namorado que apresenta o baseado, ou o amigo, de modo que as mulheres perdem até a autonomia para decidir sobre o próprio uso”.
Exemplificou, ao falar de formas mais explícitas em que o machismo aparece no movimento antiproibicionista, com os concursos de Miss promovidos por alguns sites ou mesmo ensaios fotográficos que mostram mulheres seminuas com folhas de maconha. “Outro motivo para suspeitar que mulheres que possivelmente se aproximariam do movimento tenham vontade de se afastar, o fato de se sentirem objeto ao invés de sujeito daquela luta”.
Assim, o debate se encerrou com um chamado a todos – mas principalmente a todas – para participarem da Marcha da Maconha em suas cidades e se fazerem presentes nos espaços do movimento antiproibicionista. “É bom que as mulheres vejam que a sua ausência está sendo notada” afirmou Pedrão.
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