terça-feira, 14 de setembro de 2010

Resposta a Pondé

De tempos em tempos nós as mulheres feministas nos deparamos com expressões de puro preconceito e machismo. O texto do filósofo e articulista da FSP é mais um deles. Também não é o primeiro de sua autoria a discorrer sobre as mulheres contemporâneas e seu papel na sociedade. E infelizmente não será o último.



Resposta a Pondé – A obsolescência das Agonias Contemporâneas



Uma mulher sem um homem
é como um peixe sem bicicleta, tenha ela pelos ou não!



Notícia ruim chega rápido. Chega mesmo. Ontem fui conduzida pelos clamores de companheiras feministas indignadas – hoje em dia é coisa rara, indignar-se – ao texto de Luis Felipe Pondé, publicado no caderno Ilustrada da FSP, em 13/09/210, cujo título é Restos à Janela.

Primeira reação. Horror. Não pode ser outra vez. A velha história sobre “O lugar das mulheres no mundo de hoje”. E uma vez mais frases de impactos tão irresponsáveis quanto superficiais sobre a relação Emancipação da Mulher - qualquer semelhança com a história de Pandora, Eva ou outras não é mera coincidência! – com a Desorientação Contemporânea.

Segunda reação. Não merece resposta. As minhas companheiras feministas propositivas discordaram. Desconstruir tamanho elogio ao senso comum – e ao machismo - é nossa tarefa. Fico feliz em não ser a única, nem a última.

Pois bem. Em nada exaustivo, esse texto é claramente um texto feminista. Talvez dessa onda a que Pondé alude (neopeludas?). Mas certamente mais profundo que suas reflexões sobre nossas “exigências infinitas”, sobre nossa relação com os pelos, com aparelhos de barbear e com a obsolescência.

O texto de Ponde reúne e sintetiza séculos de pensamento branco, heterossexual e de pura misogenia, que obcecado em justificar e manter a desigualdade entre mulheres e homens, faz uso das explicações naturais, que mais linha menos linha, desembocam no o controle da sexualidade das mulheres pelos HOMENS.

Vejamos. Para ele o destino da mulher é reproduzir a espécie. Incompleta e frágil que é não o faz sozinha, ela precisa do macho. E para conseguir o seu, as mulheres devem seduzi-lo, devem embelezar-se para ele, e claro disputa-lo, umas com as outras. Devem moldar-se pois – a sua consciência, subjetividade e desejos – ao tamanho do lar, que é tudo o que podem desejar e é aquilo que os homens podem dar para elas, junto com proteção, segurança e conforto. Para dela sugerem a beleza, o carinho, o amor, a compreensão, as roupas lavadas...a lista é imensa! São as mulheres do lar, são as mulheres de alguém. Assim, não estão sós. E certas de que, como fazem as macacas e as aves fêmeas, cumprem o desígnio da natureza (ou de Deus!) na reprodução das espécies.

Tudo isso ia muito bem até que aparecem algumas mulheres com certas ideias subversivas que colocam essas verdades à prova. Problematizam a construção do ser mulher, trazendo a baila os detalhes – que são as formas como o poder se manifesta, os quais Pondé intencionalmente esconde – questionando assim o destino aparentemente fatal ao qual as mulheres estariam sujeitas: o amor incondicional de mãe e de amantes, a sexualidade passiva que nunca transcende, que tornada puro objeto é intencionalmente dada – na caso de uma virgem que entrega sua pureza ao seu verdadeiro amor, ou no caso sacrossanta fidelidade feminina – ou que pode ser arrancada, tomada a força – no caso da violência sexual, ou o estupro. Em resumo uma vida resumida a agradar aos OUTROS.

Essa natural predileção pelo lar, essa fragilidade tantas vezes cantada e a cada vez mistificada, que faz de nós seres dependentes e vazios, voltados a seduzir e manter seu macho determina inclusive os dilemas de nossa existência, que como atadas à história e a sociedade em que vivemos variam: acabar com os pelos, casar e ter filho antes dos 30, aumentar os seios, o bumbum, estar sempre magra, ser sempre bela e jovem, para citar algumas das agonias contemporâneas (das mulheres) que Pondé intencionalmente não menciona. E tudo isso sob a inegável (?) e inquestionável fundamentação natural de que é da substância das mulheres.

Evidente que o questionamento das próprias mulheres produziu mudanças nas sociedades e que essas não podem ser vistas apartadas dos processos sociais, econômicos e políticos nos quais estamos todas e todos. E que muitas vezes não significam o completo rompimento com o passado. Na verdade, à uma afirmação das mulheres como sujeitas de si corresponde um sem-número de reações em contrário de representantes das mais diferentes instituições – todas elas ligadas à nossa história de opressão – como a igreja, a ciência, para ficar na dimensão macro.

O texto de Pondé, portanto, não traz nada de novo ao “bla-bla-blá mais frequente por aí”. A crescente participação das mulheres no mercado de trabalho não significou uma necessária - e almejada pelas mulheres - reestruturação da família e dos “papéis” de cada um dentro dela. Ou seja, temos o sinal verde para trabalhar, mas a casa, os filhos, a família continuam sendo nossas responsabilidades.

Certamente que Pondé não imagina que tenhamos todas que abandonar nossos trabalhos, mas incomoda a ele - e a um montão de machos por aí - que em dado momento da vida as mulheres escolham o trabalho e não a família, que coloquem mais energia em suas carreiras do que num homem. O que, de fato, causa a indignação dos machos é que essa dura batalha que enfrentamos, nós as mulheres, pela construção de nossa autonomia – econômica e também da consciência – signifique necessariamente a OBSOLESCÊNCIA dos homens, tal como eles se entendem há séculos, e por conseqüência a maneira como eles se relacionam com o mundo e os seres que habitam o mesmo.

Mas e os homens? O que farão então os homens sem aquela mulher para cortejar, humilhar, para levar pra cama depois de pagar um jantar, casar, trair, voltar, falar mal, ou para passar suas roupas e cuidar dos seus filhos? Há uma clara alteração na forma de ver o problema, certo? As agonias por fim não são só nossas, não é mesmo?

O amigo de Pondé tem razão quando diz que não há mais razão para se investir nas mulheres. Quer seja porque elas passam a ganhar mais, afinal elas estudam mais mesmo, quer seja porque, mesmo que bem devagarzinho e sempre enfrentando reações conservadoras como as de Pondé, a gente esteja conseguindo atacar o paradigma que determina as relações entre homens e mulheres, o que para nós significa abrir caminhos para a construção de novas mulheres e homens. Há uma evidente diferença com a alegoria sobre disputar a lâmina de barbear pela manhã. Não se trata de virarmos homens para termos mais direitos, mas de construirmos um mundo com IGUALDADE para mulheres e homens.

Para Pondé, as agonias contemporâneas - o medo, a solidão e a insegurança (repito, só das mulheres?) - são percebidas como resultado direto da inversão dos valores propostas pelas primeiras feministas. Mas preso aos detalhes, Pondé não consegue identificar que esses males não são exclusivos da mulher moderna, muito menos podem ser lidos como resultado indesejado de nossas conquistas. Eles dizem respeito à adoração desmedida ao consumo nessa sociedade guiada pela lógica da oferta e da procura e totalmente atomizada na crença do individualismo, como único caminho para a felicidade constante e ininterrupta (ela mesma um mito, tal como Pondé explicitou sobre a falibilidade da vida afetiva), através da lógica avassaladora da mercantilização de casa dimensão de nossa vida (objetiva e subjetiva), a mercantilização da vida em si.

Há muito que fazer, há muito que derrubar e um mundo inteiro para reconstruir. E esteja certo, Pondé e todos que suas ideias representam, de que nós e as outras que virão depois de nós, continuarão a movimentar-se a se organizarem as passeatas,  debates etc. Continuaremos a denunciar e a lutar contra todos os canais de opressão, para que chegue um momento em que as mulheres não precisarão mais dos assobios nas ruas para se sentirem bonitas, que não precisarão de um macho para se sentirem completas, em que elas experimentarão a autonomia plena sobre seus corpos e vidas. E assim, diante de novas mulheres e novos homens, o desejo, o amor ou qualquer coisa que o valha serão apenas, e tão somente, expressões da vontade pura e desinteressada, sem significar o exercício de poder sobre as MULHERES.


Seguiremos em Marcha até que todas sejamos livres!


Camila Furchi
Militante da Marcha Mundial das Mulheres

5 comentários:

Unknown disse...

É uma pena que ainda haja este tipo de pensamento, mas é uma vitória pessoas como você para responder!

Anônimo disse...

Ótimo texto, Ca!

Muito bem argumentado e muito bem escrito - ao contrário do texto de nosso amigo Luizinho, superficial e cheio de clichês.

Fiquei, sinceramente, feliz com os posts que li de ontem pra hoje na blogosfera feminista. Mostram que não assumimos o rótulo por acaso: temos muito o que dizer, e sabemos muito bem como fazer isso.

Como disse mais cedo: se cada manifestação pública de sexismo gerar tanta produção feminista boa como essas, vou pensar em parar de criticar o CQC, a Folha, o Pânico, os filmes hollywoodianos, as revistas femininas, os meios de comunicação de massa, o meu colega de trabalho, o seu vizinho, os nossos pais...

Denise disse...

Não só na blogosfera feminista pipocam manifestações de indignação! Elas circulam também no cotidiano de trabalho, na conversa de corredor e nos emails trocados com amigos e parentes... E é um grande prazer poder enviar às conhecidas e aos conhecidos, além de minha própria fúria, textos bem estruturados como este.

Karina Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Participe de uma resposta coletiva à Folha e a Luiz Pondé.
http://neopelucias.wordpress.com/